Aspectos gerais sobre a teoria da perda de uma chance: quando uma oportunidade perdida é causa de indenizar

Por: Gabrielle Gazeo Ferrara

A teoria da perda de uma chance é uma construção doutrinária aceita no ordenamento jurídico brasileiro como uma quarta categoria de dano, dentro do tema responsabilidade civil, ao lado dos danos materiais, morais e estéticos. Embora bastante utilizada na prática forense, ainda é tema de controvérsias.

Isso porque trata-se de um dano de difícil verificação. O dano que se origina a partir de uma oportunidade perdida está lidando com uma probabilidade, uma situação que possivelmente aconteceria caso a conduta do agente violador não existisse. Por isso, aproxima-se dos danos eventuais que não são passíveis de indenização.

Apesar disso, a teoria da perda de uma chance possibilita a reparação de danos nos casos em que há nitidamente a inibição, por culpa de outrem, de um fato esperado pela vítima, impedindo-a também de aferir um benefício consequente daquela ação (ou evitar uma desvantagem). Deste modo, a vítima garante a obtenção da reparação por parte do causador do dano, haja vista uma expectativa ter sido frustrada por ele.

A teoria da perda de uma chance foi desenvolvida na França (perte d’une chance) na década de 60 e também bastante estudada pelos italianos. Além da França e Itália, esta teoria também é verificada em diversos julgados americanos e ingleses provenientes do sistema commom law.  Um famoso julgado inglês em que foi aplicada a teoria é conhecido como Chaplin V. Hicks[1], no qual a autora da ação estava participando de um concurso de beleza e já se encontrava entre as 50 finalistas quando teve sua chance de vencer interrompida pelo réu que não permitiu sua participação na última etapa da competição. Neste caso aplicou-se a teoria da perda de uma chance para configurar o dano e estabelecer o dever do réu em ressarcir a autora, cuja quantificação se deu mediante a proporção de chances que a vítima possuía de ganhar o concurso.

No Brasil, o caso emblemático deste tema foi o REsp 788.459/BA, do ano de 2005[2], no qual a autora alegava ter perdido a chance de ganhar 1 milhão de reais no programa “Show do Milhão”, em razão da pergunta final não ter resposta correta. O julgado considerou a teoria da perda de uma chance para condenar a ré ao pagamento de indenização, porquanto restou demonstrado que a autora de fato havia perdido a oportunidade de vencer o programa e levar o prêmio por culpa da ré que elaborou pergunta sem resposta.

A teoria da perda de uma chance, portanto, constitui situação em que a prática de um ato ilícito ou o abuso de um direito impossibilita a obtenção de algo que era esperado pela vítima, seja um resultado positivo ou não ocorrência de um prejuízo, gerando um dano a ser reparado.

Assim como os danos materiais, morais e estéticos, a perda de uma chance também exige a presença de um dano, ocasionado por uma conduta culposa do agente (ato ilícito e/ou abusivo) para formar o nexo causal e gerar a obrigação de indenizar, porém, o que o difere dos outros tipos de danos, nos quais o dano é concreto ou no mínimo facilmente perceptível, é o fato de ser de difícil verificação e quantificação.

Para auxiliar na análise do caso concreto e diferenciação do dano decorrente da perda de uma chance do dano eventual, hipotético, importante que seja examinada a probabilidade da ocorrência desse resultado final que era pretendido, ou seja, é necessária uma nítida compreensão de que aquela chance que se alega perdida pela vítima seria muito provável de se alcançar se não fosse a conduta do agente que violou a expectativa. O improvável ou quase certo devem ser descartados.

Fala-se também na doutrina sobre a percepção de que a chance perdida era séria ou real. A existência de um valor econômico desta chance perdida[3] contribui para que o dano seja cognoscível.

Além disso, o dano deve apresentar-se como um prejuízo certo para a vítima, isto é, a chance perdida deve repercutir de alguma forma em sua esfera patrimonial ou extrapatrimonial. Necessário, portanto, que se vislumbre claramente um dano em razão da expectativa frustrada.

Vislumbra-se a teoria da perda de uma chance em diversas circunstâncias e ramos do direito. No direito do trabalho, por exemplo, a teoria foi aplicada em caso de empregado que teve oportunidade de trabalho perdida porque seu último empregado reteve indevidamente sua CTPS[4].

É possível localizar a aplicação da teoria da perda de uma chance em circunstâncias especiais de descumprimento contratual, como no caso de um julgado proveniente do STJ, no qual, com base na teoria da perda de uma chance, uma empresa de coleta de células tronco embrionárias de cordão umbilical foi condenada a indenizar recém-nascido por não ter comparecido ao hospital para proceder a coleta[5]. Para a Corte Superior, o recém-nascido perdeu definitivamente a chance de prevenir tratamento de patologia num futuro, tendo em vista que hoje a medicina moderna avança nos estudos para utilização de células tronco como meio de cura de diversas doenças.

Também em relação ao tema inadimplemento contratual, com base na perda de uma chance, empresa de sistemas de bloqueio de veículos à distância foi condenada a indenizar cliente que teve veículo furtado[6]. Ainda que se trate de uma obrigação de meio a da empresa contratada, entendeu-se que, ao deixar de realizar o bloqueio do veículo quando avisada sobre o furto, configurou-se situação na qual houve a perda da chance do contratante do serviço recuperá-lo.

Não menos interessante foi o caso em que a perda de uma chance foi utilizada para indenizar consumidora em razão de falha na prestação do serviço de reservas de hotéis pela internet. No caso, a consumidora iria prestar certame em outra cidade, mas não teve a reserva do seu hotel efetivada conforme contratado e no dia do concurso não havia mais vagas nos hotéis da região, por isso não pôde realizar a prova.  No caso, o Tribunal entendeu que foi frustrada a chance de prestar o concurso para o qual havia se preparado e tinha chances de aprovação e diante disso condenou a empresa a reparar o dano[7].

Por fim, vale destacar que até mesmo o Estado pode ser responsabilizado com base nesta teoria, como no caso de paciente que falece em decorrência da demora do Estado no cumprimento de decisão judicial que determinava a entrega de medicamento imprescindível à manutenção da sua saúde[8]. A omissão do Estado eliminou a possibilidade de sobrevida da vítima, ou seja, das chances de permanecer viva.

Enfim, observa-se a ampla utilização da teoria na prática forense, sendo diversas as hipóteses em que é possível caracterizar a perda de uma chance, no entanto, ainda assim há aqueles que entendem não existir dano advindo da perda de uma chance, pois não seria diferente de um dano hipotético. Para estes, no caso de uma chance perdida os danos decorrentes desta situação seriam os já aceitos danos patrimoniais e/ou morais.

De qualquer forma, importante considerar que o ser humano é um sujeito de expectativas. Todos são submetidos, diariamente, a diversas e complexas relações que, por muitas vezes, geram expectativas, isto é, projetam-se sonhos, desejos e vontades e espera-se que eles se realizem. Este tipo de ocorrência não pode ser desprezada pelo direito, pois tanto a expectativa em si, quanto a sua consequente frustração, são capazes de produzir efeitos no mundo do direito e em tais situações que a teoria da perda de uma chance pode ser utilizada.

Assim sendo, a teoria da perda de uma chance auxilia na obtenção de uma reparação nos casos que decorrem do sentimento de frustração, de uma oportunidade perdida, sendo de relevância importância destacar que no momento de aplicar esta teoria, o dever de reparar o dano caracterize-se somente após a análise apurada do caso concreto, considerando principalmente a razoabilidade e probabilidade da ocorrência do resultado que a vítima buscava e que alega ter sido perdida.

Artigo publicado no site Migalhas edição nº 3.946 de 13 de setembro de 2016

O presente artigo foi escrito e divulgado com finalidade meramente didática e informativa, e, portanto, não configura uma orientação jurídica ou consultoria em nenhuma hipótese. Para obter uma orientação específica sobre o tema aqui tratado, consulte um advogado.


[1] [1911] 2 KB 786, Court of Appeal of England And Wales.

[2] REsp nº 788.459/BA, Rel. Min.Fernando Gonçalves, j. 13.03.2006.

[3] Sobre o tema, há o enunciado 444, aprovado na 5ª Jornada de Direito Civil, como orientação aos profissionais do direito nos casos de aplicação da teoria da perda de uma chance: “A responsabilidade civil pela perda de uma chance não se limita a categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos.”

[4] TRT 3ª R.; RO 1042/2009-079-03-00.6; Quarta Turma; Relª Juíza Conv. Maristela Iris da Silva Malheiros; DJEMG 06/12/2010.

[5] REsp nº 1.291.247/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 19.08.2014

[6] TJSP – Ap. 0179842-53.2008.8.26.0100 – Rel. Des. Hamid Bdine, j. 23.04.2014 e Ap. 0045311-76.2012.8.26.0007, Rel Des. Ana Catarina Strauch,j.  17.10.2014.

[7] TJMS – Ap. 0100179-76.2009.8.12.0046, j. 19.11.2012

[8] AREsp nº 173.148/RJ, Rel. Min. Assusete Magalhães, j. 03.12.2015