Por: Rafael Federici
A regulamentação da Telemedicina[1] no Brasil vem evoluindo a passos erráticos, muito embora o assunto esteja na pauta da saúde pública há quase duas décadas, conforme Portaria GM/MS 494/2000 do Ministério da Saúde (MS), que resultou em 2007 na criação do Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes, atualmente em vigor e devidamente operacionalizado por diversas normas infralegais no âmbito do MS.
A Telemedicina abrange um conjunto de aplicações na área da saúde, como: telediagnóstico (serviços à distância de apoio ao diagnóstico); telemonitoramento (avaliação à distância de parâmetros de saúde); teleconsultoria (consultas e orientações à distância); teleducação (cursos e treinamentos à distância, em saúde); telecirurgia (procedimentos cirúrgicos à distância) entre outras aplicações.
Atualmente, no âmbito do Conselho Federal de Medicina (CFM), o tema encontra-se insuficientemente regulado pela Resolução 1.643/2002, após a revogação da Resolução CFM 2.227/2018, que pretendia modernizar o tratamento regulatório do tema, sem sucesso. A referida resolução revogada foi amplamente criticada e se tornou mais um exemplo de regulamentação errática do tema no Brasil.
A Crise da COVID-19
Neste momento de crise aguda provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da doença infecciosa conhecida por COVID-19 (coronavirus disease 2019), a Telemedicina se apresenta como um importante instrumento de apoio diagnóstico e de orientação ao tratamento.
Profissionais da saúde em grandes centros populacionais, mais expostos aos desafios do combate à COVID-19, acumulam naturalmente maiores conhecimentos sobre a doença, seus estágios de evolução, reflexos nos exames de imagem, sobre protocolos de tratamento conforme o perfil do paciente, entre outros conhecimentos de extremo valor para o momento.
É essencial colocar estes profissionais em contato com outros profissionais de saúde e pacientes em localidades remotas ou em centros de saúde locais que ainda não tiveram a oportunidade de acumular conhecimento prático e extensivo no combate à referida doença. Isso poderia, em tese, salvar vidas.
Atentos a essa realidade, o Congresso Nacional, o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina agiram (embora descoordenados) com o objetivo de operacionalizar as medidas de enfrentamento da emergência de saúde no Brasil:
Portaria 467/2020 do Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde, através da Portaria GM/MS 467/2020, valida a prática da Telemedicina durante o período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Portaria GM/MS 188/2020).
As modalidades validadas são as de “atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico”, tanto na saúde pública como na saúde privada.
Os médicos poderão emitir receitas e atestados à distância, com o uso de assinatura eletrônica mediante certificação digital sob a ICP-Brasil (Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira), bem como mediante outros métodos sem o requisito do certificado digital.
Um ponto que demonstra novamente a regulamentação descuidada do tema no Brasil é a menção desatualizada (na Portaria 467/2020) à Declaração de Tel Aviv sobre Telemedicina, adotada em 1999 pela Associação Médica Mundial (WMA). Referido documento foi revogado em 2006 e atualmente é regulado pela declaração adotada pela WMA em 2007 e atualizada em 2018.
Ofício CFM 1756/2020
O Conselho Federal de Medicina emitiu o Ofício CFM 1756/2020 destinado ao Ministro da Saúde, informando a decisão de validar a prática da Telemedicina para além dos parâmetros dispostos na Resolução CFM 1643/2002, que, diga-se, são muito poucos.
O referido ofício do CFM aborda especificamente as modalidades de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta (troca de informações e opiniões entre médicos).
O CFM deixa claro que esta posição se dá em caráter excepcional, porém não vincula esta excepcionalidade a nenhum ato legislativo em vigor, apenas menciona que ela permanecerá “enquanto durar a batalha de combate ao contágio da COVID-19”.
Projeto de Lei 696/2020
O Projeto de Lei 696/2020, de iniciativa da Deputada Adriana Ventura, foi enviado à sanção do Presidente da República na data em que este artigo foi redigido.
O projeto legislativo autoriza o uso da Telemedicina “durante a crise” ocasionada pelo SARS-CoV-2 e dá validade às receitas médicas emitidas digitalmente com assinatura eletrônica ou simplesmente “digitalizada”, sem exigir que tais ferramentas estejam sob a ICP-Brasil.
O PL 696/2020 não limita o uso da Telemedicina a nenhuma modalidade específica, permitindo, em tese, a sua adoção em qualquer formato, desde que por profissionais médicos.
Curiosamente, o PL 696/2020 avoca para si a competência regulatória sobre o tema durante o período de crise, esclarecendo que o CFM poderá regular a Telemedicina após a crise do novo coronavírus, o que denota que o entendimento atual do CFM sobre Telemedicina não tem efeito regulatório pleno enquanto permanecer o estado de crise.
Pelas diferenças (algumas inconciliáveis) existentes entre as normas e entendimentos acima mencionados, percebe-se que temos muito a evoluir na regulamentação do tema Telemedicina no Brasil.
O período atual de crise pode servir como o evento catalizador de uma regulamentação futura para o tema no Brasil, desta vez pensada com maior cuidado e dedicação, seja por parte do poder legislativo, de órgãos do executivo ou pelo CFM.
Artigo publicado no site migalhas (www.migalhas.com.br) edição nº 4.827 de 07/04/2020
O presente artigo foi escrito e divulgado com finalidade meramente didática e informativa, não configurando uma orientação jurídica. Para obter uma orientação específica sobre o tema aqui tratado, consulte um advogado.
[1] Embora alguns estudiosos apontem uma diferença semântica entre Telemedicina e Telessaúde (estando aquela inserida no espectro desta), para os fins desse artigo adotaremos tais expressões como sinônimas.